6.2.10

OPUS ODIU

Quis esconder os meus dedos
nos teus cabelos de mágoa

mas tua mágoa era grande

para fugir no meu gesto.

(Hilda Hilst)

Ainda que se pudesse dizer: “em uma hora dessas a gente diz coisas da boca pra fora”, ele bem sabia que era sério. Não foi falado, foi escrito. “A fala voa, a escrita se arrasta”, lhe aconselhou uma vez uma antiga professora de linguística. A escrita se vale do tempo, ele entendia – pode-se pensar, avaliar, corrigir e então lançá-la para que ela depois atravesse o mundo e o próprio tempo.

“Eu não tenho só raiva de você. Eu tenho ódio de você.” Era ódio sim. Ódio fecundo, porque quem havia lhe escrito ainda o amava. “Eu não tenho só raiva de você. Eu tenho ódio de você.” Ele releu mil vezes. Era ódio sim. Jorrava grosso e frio. Forte porque havia amor. E facilmente distinguível: não era raiva, mera e passageira emoção, era ódio, sentimento.

“Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” “Eu tenho ódio de você.” – seu pesadelo na noite.

Estava esgotado: havia, na véspera, feito um esforço tamanho tentando explicar: não fizera nada errado; havia sido sincero. E não fora nada fácil falar sobre os últimos acontecimentos da forma que contou. Importava-se sim. Sabia que o que contara era muito menos fácil de ouvir e isso também o feria. Mas não maculara nada, não profanara nada. A realidade era tão outra! E tivera de silenciar o que realmente gostaria de dizer – não houve nenhum contexto permissivo.

Não merecia ódio. Mas disse a si mesmo naquela manhã, os olhos ainda de sono, vacilante, mas lúcido: aceito. Só rejeitaria, no entanto, a culpa da forma que lhe fora imposta. Pois em nenhum lugar de si a encontrava. Estaria preparado pra expiação se tal culpa houvesse. Mas não. Mesmo Deus ele já havia rejeitado, entre outras razões, para não mais sofrer culpas que não eram suas. Não mais permitiria que o que não lhe parecia consistente, nem passível de crença sã, lhe atormentasse com culpas ancestrais pelas quais ele não se sentia responsável. Não, Deus. – Deus, não. – Não sou culpado!, repetia.

Aceitou o ódio e este lhe recaiu como maldição. Sobretudo naqueles últimos dias de um ano tão morbidamente simbólico. Havia, em criança – fora da realidade que era –, criado, numa espécie de lenda pessoal, a crendice de que morreria aos vinte e sete anos. Era aquele ano e já o tivera quase inteiro para morrer, mas nada aconteceu. Agora, aqueles últimos dias que faltavam para provavelmente não morrer e, assim, sepultar em si qualquer resquício de medo que se tem na noite do que está sobre o natural, pareciam uma tormentosa contagem regressiva.

Estava com medo sim. Deus – ele assim preferiu dizer naquela noite que parecia assombrada –, Deus, seria mais fácil acreditar em vós se não tivessem vos obrigado a ser mais que Verbo! – Pois era na palavra que ele sentia fé, devoção, medo e angustiava-se com seu mistério. Palavra, palavra, és tu e somente tu que reúnes em si mesmo significado e significante. És Alfa e Omega. A ti eu uso para ter uma modesta existência e para fazer existir. Foi me valendo de ti que tentei abençoar e salvar o amor. Mas que sou eu? Tu não me revelas a que elucida. Enfraqueci porque naqueles tempos tu me entravas em formas duras, pesadas, cortantes e gélidas nos ouvidos. Baixaste o tom com que o amor falava nas bocas. Houve muitas, desnecessárias, desferidas como tiros em corpos mortos em guerra. E tu corrias de minha boca em formas igualmente horrendas, e eu pouco pude te reter porque sou só humano e tu bem sabes o que quer dizer “humano”. E agora me vens envenenada, mal dita, maldita. Vens como vômito. Vens para contaminar mesmo o que não escuta. Estou como sujo de ti. E resignadamente aceito. Aceito porque espero que em breve tu te convertas em outras, vindas de onde quer que seja, na claridade ou escuridão, retumbantes ou em forma de murmúrio. Aceito porque entendo que as de ódio também são necessárias e não são exatamente antônimas das de amor. Compreendo que a cólera soe mais alta e abafe o que se entoa insistentemente, incomodando, sobretudo por ser a verdade intimamente preferida. Aceito todas de ódio que me vierem, mesmo as que firam meu corpo, porque uma morte pelo ódio acaba conferindo alguma santidade. Lembro-me que já tentei experimentar ativamente o ódio, mas tu me o negavas. Então aceito passivamente que agora ele recaia sobre mim. E no fim, quando eu já não puder mais, dá-me algum alívio. Faze com que eu não me perca em todas as tuas possibilidades e variantes. Ensina-me a dizer. Explica-me o caminho. Dá-me as respostas que preciso. Dá-me os significados. Dá-me as de redenção. Dá-me as de salvação. Dá-me as de paz. Deixai que eu possa ainda mais uma vez na vida dizer para alguém: eu te amo. Não me abandones. Preenche-me para que o silêncio não tome conta de minha vida e eu enlouqueça. Recebe-te de volta embotada de mim nestas orações. Amém.

9 comentários:

amarelo disse...

*_*


"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."
(Clarice Lispector)

seja qual for o sentimento, seja qual for o conto, te ler é espetacular e me faz sentir cada palavra.


amém.

Daneca disse...

"Parece-me também que a palavra mais grosseira, a carta mais inconveniente são ainda mais benignas, ainda mais honestas do que o silêncio. Aos que se calam falta quase sempre a delicadeza e a cortesia do coração; o silêncio é uma objeção, engolir tudo produz necessariamente um mau caráter e estraga o estômago. Todos os que se calam são dispépticos. Não gosto, como vê, que se menospreze a rudeza, ela é, de longe, a mais humana forma da contradição e, em meio ao amolecimento moderno, uma das nossas primeiras virtudes".

Nietzsche

Meu estômago vai bem, e o seu?

Vou orar sua oração, por todo coração que pulsa...

Anônimo disse...

O que me torna tão íntimo ao texto, talvez não saiba, ao certo. Mas, seja pela escrita bonita, ou pelos sentimentos que andam me corroendo, é impressionante e digno de toda a apreciação que lhe possa ser conferida.

Caro, ganhou um fã assíduo. Parabéns!

Pedro disse...

Sabe supernova? Pronto, foi o que me veio à cabeça ao ler esse texto.
:)

Cristiano Contreiras disse...

Interessante o conceito deste espaço, te sigo!

Cristiano Contreiras disse...

Olá, vi sua visita no meu orkut, se puder apareça no meu blog também e siga...seja bem-vindo, abraço

Diego Drush disse...

Bendito seja ódio que nos venha. Acredito que não exista amor sem que o ódio nos tenha, nessa imensidão de intensidade, nesse campo sem contrato.

Felipe, bendito somos nós em poder apreciar seu dom.

Tatha Fernandes disse...

"Como poderia odiá-la tanto, se ainda não a amasse"

lindo texto!

Anônimo disse...

quando eu crescer, não caberá em mim tanto sentimento!
dói! é repulsa (não a gravidade)!
o que te dói, não é mudo e tem nome... goste da tua dor, cospe - escreva mais e mais e mais... Amém!