27.10.14

COM A COMPANHIA DE UM CÃO

Há um cachorro aqui em casa. Não é meu. Pertence à minha amiga que mora comigo. Mas não mora aqui nem morará. Está apenas por uma temporada, enquanto a mãe e o irmão dela – que cuidam dele por morarem numa casa espaçosa –, estão viajando.
Se chama Peruco. Sua dona está toda feliz, já comprou um monte de comida para ele e, mesmo trabalhando até madrugada (numa companhia aérea) – o que lhe dá o direito de dormir durante o turno da manhã –, acorda cedinho e de muito bom grado para levá-lo para passear e para que ele possa fazer cocô e xixi, pois Peruco, de fato, é bastante educado e jamais faz suas necessidades dentro de casa, nem qualquer outro tipo de sujeira e nem barulho.
Quando minha amiga está em casa, Peruco está sempre atrás dela e, mesmo ela, com um cuidado de mãe, está sempre preocupada com ele. Mas aí chega a hora dela ir trabalhar (em geral, à noite e, em alguns dias, à tarde) e Peruco fica aqui comigo. É claro que de forma bem diferente de quando está com ela. Ele parece gostar dos carinhos que lhe faço vez ou outra, mas também não pede por eles, nem parece se empolgar. Não atende quando lhe chamo. Não abana o rabo quando sou eu quem volta para casa depois de também ter saído deixando-o totalmente sozinho. Entretanto, mesmo mantendo uma certa distância, Peruco fica sempre onde estou. Se estou no quarto usando o computador ou lendo na mesa, ele fica ali, ao lado do ventilador; se vou ler deitado na cama, ele vai para o lado da cama; quando levo os livros pro sofá da sala e fico lá lendo, ele também vai e fica perto de meus pés; nos momentos em que estou na cozinha preparando algo ou lavando louça, ele também vai e fica na entrada ou logo atrás de mim. – Sempre deitado, caladinho, mas sempre comigo.
É evidente que Peruco não gosta de mim como gosta de sua dona e eu mesmo não gosto dele como ela gosta. Ainda não tivemos tempo, nem eu nem ele, para isso. Contudo, é inquestionável que diminuímos nestes momentos a solidão um do outro. E, por isso mesmo, há uma secreta cumplicidade entre nós.
Humanos ou animais, arredia que seja cada personalidade, estamos sempre de alguma maneira dependendo de uma outra vida para acalentar a nossa. Estamos sempre confirmando a nossa própria vida com a vida do outro. Pois, por mais que nos queixemos de solidão na multidão (e isso de fato é uma triste realidade para muitos), a multidão ao menos nos faz manter o equilíbrio, afugentando o desespero que seria nos encontrarmos sozinhos em meio a um deserto, ou a clausura perpétua na solitária de um presídio, ou como únicos sobreviventes de uma tragédia mundial, ou qualquer outro assustador exemplo similar. Solitária que seja quem não tem amigos, namorado(a)/esposa(o) ou família, ainda tem na mudez e indiferença das pessoas que vê nas ruas, no trabalho, faculdade, ou seja onde for, rostos vivos, de gente, de bichos, que lhes confere a paz interior da certeza de que a grande e total solidão ainda não chegou.
Tenho amigos e familiares, não me sinto solitário mesmo quando estou sozinho. Mas, ainda assim, é bem mais leve estar sozinho com uma companhia como a de Peruco.

(escrito em novembro de 2012)

12.6.14

UMA HISTORIA DE AMOR À PRIMEIRA VISTA NO DIA DOS NAMORADOS


para Ariane da Mota e Afonso Henrique Novaes


Em junho de 2009, o relacionamento mais duradouro que tive já dava sinais de que estava chegando ao fim. E dois ou três dias antes do Dia dos Namorados, após uma briga feia por um motivo bobo, eu já podia prever que passaria aquela data completamente em branco. Foi então que Ariane – minha amiga e naquela época também colega de trabalho – há pouco tempo solteira, me sugeriu, ao saber da minha situação, que trocássemos presentes na data, para que não ficássemos tristes. Topei.

Para aquele dia doze eu havia agendado com meus alunos uma avaliação. E foi exatamente no momento da prova, a sala silenciosíssima, que Ariane apareceu à porta me chamando e entregando o presente. Abri o pacote. Era um livro: Baladas, de Hilda Hilst, escritora que eu jamais havia lido, mas que já conhecia pelo nome e sucessivas recomendações de Afonso, um outro amigo que também me apresentou a outros autores que passei a admirar, e da própria Ariane. Agradeci o presente, dei-lhe um abraço, e combinei de nos encontrarmos no final da tarde para lhe entregar o seu.

Como não havia outra coisa a fazer a não ser fiscalizar os alunos em prova, decidi começar a ler o livro, para ver se de fato iria gostar dessa Hilda tão recomendada. E bastou ler a primeira página, o primeiro poema – me acertou em cheio aquele conjunto de versos. Fiquei tão completamente emocionado,  fui tão flagrado na minha sensibilidade, que não pude conter o que sempre evitei acontecer na frente dos alunos: eu chorei. Tentei disfarçar, mas, de pé à frente de umas quarenta pessoas, foi inevitável que pelo menos um ou dois estivessem olhando para mim no momento e perguntado em voz alta: está chorando, professor? Aguçando a curiosidade de todos.   Respondi: estou sim, mas não se preocupem, estou chorando de beleza, apenas de beleza... E ergui o livro para tentar ajudar na justificativa. Alguns riram, mas, ainda bem, não deram muita importância e voltaram à prova. Então li mais uns outros sem receios. E chorei ainda mais – de uma dor que só a verdadeira Beleza provoca, de comunhão profunda do meu eu com aquele outro que dizia todos aqueles versos, de um arrebatamento de amor à primeira vista, à primeira leitura. 

Desde então, apaixonadamente, percorri os passos da Hilda. No final daquele ano, já tinha quase todos os seus livros (que não são poucos) e já havia lido praticamente todos. Este amor dura até hoje, leal e como desejo que todo amor que me venha seja: me emocionando, me divertindo, me melhorando, crescendo comigo, segurando minha mão no escuro, e sendo comigo amor e morte ao mesmo tempo.