10.8.13

A DESPEDIDA

para Alexandre Valadão

Sempre que você está indo embora, você pode ficar no coração do outro.
(Hilda Hilst)

Toda despedida é um pequeno ensaio de morte. Refluxos da memória, prólogo das ausências, funduras espaçosas, ameaças de pranto, toda despedida é um sim da descontinuidade entre as vidas. E eu aqui nesta estreita cama colado ao teu corpo respirante de carne e pelos, eu aqui braços te enlaçando tu maior que eu, velando teu sono matinal enquanto observo a luz do sol fatiada pela persiana da janela na tua e minha pele, eu aqui olfato atento aos mornos olores que exalam de ti tua barba, eu aqui melancolia de uma saudade anunciada, eu Flúvio outrora crente de não ser mais capaz desses luxos de amar, depois das fodas desejando impacientemente que vão embora os homens ou eu mesmo fugindo quando gozo fora de casa, agora aqui contigo Ângelo meu amor lamentando porque tens de ir sem mesmo um assomo de data para um novo nosso encontro, então seremos de novo apenas palavra carícias verbais pensamento virtualidades telefonemas essas abstratas manutenções da existência um do outro... Por acaso não dormiste e ficaste aí me vigiando enquanto eu dormia? Ah!, Ângelo, acordou!? dormi sim claro, apenas deitei depois e acordei antes de ti. Pois é, adormeci sem ter te visto voltar pra cama, por que demoraste tanto no banho? foi aquilo de novo debaixo do chuveiro? Sim acho que sim, deveria ter me banhado mais cedo contigo, não ido sozinho. Um dia ainda vais se afogar no chuveiro e figurarás no rol das mortes estúpidas. Ah não ria, não é pra tanto, apenas esqueço de mim por alguns instantes não sei quantos: como estivesse no jorro de clepsidras e fico ali pensando não sei o quê ou não me lembro nunca enquanto a água cai me lava e leva o tempo, mas tu sabes que também me acontece isso fora dela. Sim sei não zombo, pois das poucas coisas que me deixam enciumado de ti é este teu mundo que não acesso pra onde não posso ir contigo e sei fazer parte magmática de quem tu és no teu de-dentro e mais amo, no entanto acho bonito e curioso isso e gosto de observar teu olhar alado atento a esses nadas quando estando ao meu lado vais assim pra muito longe, ontem por exemplo ficaste por quase meia hora desligado aqui na cama depois que trepamos, fiquei te olhando. Devias ter me sacodido me chamado, por que não me chamas nesses momentos? não me deixes ir assim Ângelo já é tão pouco o tempo em que podemos estar juntos não me deixes ir estando contigo pois também às vezes tenho muito medo. Medo de quê? Medo de um dia ir longe demais e não mais conseguir voltar... Mas faria diferença? é em ti que te percorres, ainda que vás muito longe é em ti que permaneces e em ti que te moves. Não não, não é simples assim, há lonjuras interiores que nos levam pra escuros vastos pra ocos pra buracos-negros que estão em nós mesmos e quando caímos somos tragados aniquilados pelo próprio âmago, tenho medo Ângelo pois já vi de perto a cara tessitura e hálito de doidos de tristes e de poetas, me assusta. Ei desafoga estes olhos flúvios olha pra mim me ajuda a arrumar as malas, falastes em poetas me empresta o livro daquela Orides que andavas lendo aquela dos gatos da estrela da tarde, grifaste e puseste anotações nele? separa outros desses que tu escreves nas páginas enquanto lês esses que tu marcas o que te chama a atenção e me deixa levar comigo, assim leio eles e tu intrinsecamente e vou sabendo como os sentes sabendo o que tem de ti neles pelos teus escritos e os do autor, talvez como mapas me levem um pouco a essas tuas paragens internas. Tudo bem, mesmo sentindo um certo constrangimento com a ideia pois sei: tu dispões de algumas chaves necessárias, tu conseguirás sim alcançar algo, nalgumas coisas mais que eu até, pois já soubeste me dar muitas vezes os espelhos certos para que eu próprio a mim me visse, não poderia negar-te, mas cuida bem deles porque sei que haverá um tempo em que eu os precisarei para me guiar a mim, entretanto quero que também me faças algo: me escreve de alguma de tuas viagens desta ou outra dentro do avião enquanto voas como escreveste daquela quando regressavas pra tua casa da Europa me contando que depois de vinte anos houveste chorado quando estavas num museu e que aquilo só aconteceu porque eu passara a participar da tua vida, me escreve novamente pondo no cabeçalho "céu" antes da data, bem angelus assim, e se não souberes o que escrever escreve à maneira automática de Breton não pensas escreve o que te vier para que se te escapem os ditos porque teus olhos sempre denunciam mais mistérios em ti que os que me apontas ter, e eu de pouco disponho para acessar o que sustentam teus silêncios e erigiram as paredes que represaram por tantos tempos teus choros. Prometo que tentarei acho justo, o amor precisa dessas buscas, talvez te mande também alguns escritos antigos que guardo comigo algumas fitas em que gravava pensamentos em voz alta, se não temos um dia-a-dia tentemos uma vida-a-vida, mas vai abre agora ali a janela começa a fazer calor neste quarto e também quero ver mais uma vez a vista que tens daqui, as janelas do meu apartamento veem o mar, estas tuas um rio encontrando o mar, é mais bonito isto então aproveitas pra olhar sempre antes que construam edifícios aqui em frente que te bloqueiem a visão de tudo, um rio que encontra o mar: eterno retorno, cedo ou tarde sempre voltamos ao mar não importa em que forma seja, é preciso no entanto nos mantermos líquidos para que chegada a hora não nos demoremos tanto e nada seja tão doloroso. Tenho pensado muito nisto Ângelo às vezes me angustio minha cabeça se enche de questões, tu achas que já estás preparado? Não sei como saberia? só posso te assegurar que os ventos não fazem mais grandes ondas aqui dentro. É engraçado falares assim, pois recordo de quando vi o mar da tua casa também ele é mais calmo que os demais que conheço, acendi à sua margem cigarros sem precisar proteger o fogo. Pois bem, talvez estejamos prontos um pro outro, mas ainda há muito o que viajar ler comer meter há muito do que rir aprender e amar, não fiques pensando nestas coisas, pensa no amor, não somente o que sentes por mim por ti pelos outros, pensa no amor como Virgílio e aqueles outros: a-mors: não-morte, e ama, porque tu sabes como poucos. Não sei se sei tanto assim, já te falei que antes de ti pensava estar estragado pensava não mais ser pra mim essas coisas de amor que me contentava em foder procurando no corpo alheio como entender o meu próprio corpo, sem amigos e sufocado com a mínima exigência de atenção da família, se fosse dado à culpa talvez me mortificasse com pesares de deixar vir os outros apenas quando fosse do meu interesse, onde estou eu? me perguntava, onde deixei aquele viço aqueles frescores aquele instinto paternal do mundo? tantas noites quis saber, tu me resgataste Ângelo, trouxeste de volta tudo aquilo. Nada fiz além de segurar tua mão por saber que atrás daquela carapaça ranzinza da boca reclamona do sarcasmo sumarento estavas tu este que amo este de poucos, toma pega estas camisinhas que não usamos em nossas fodas usa-as com teus homens e libera aperfeiçoa adestra ainda mais teu corpo pra quando eu voltar, já que tu ainda tens esta paciência para encontros trepadas casuais. Ora vais me dizer que tu não? Cada vez menos, já vi provei senti demais Flúvio hoje não me interessa muita coisa, aprendi as delícias do não: há um sabor especial nas recusas quando nosso não vem por não querer e não por não poder, tenho dito muitos nãos ao mundo porque igualmente aprendi a dizer sim a mim e só e somente só ao que me diz respeito, então cuida-te porque a mim tu me interessa, o teu amor teu eu-segredo tu sem talento para os mapas das ruas tu palavras certas canto das sereias teus tropeços quando caminhas a brancura de tua pele teu cabelo enrolado tu inapto à vida prática tu sentinte perguntante suspenso em teus mistérios, esse que eu amo. Ah Ângelo me abraça, com mais força, porque também te amo, porque calculo as distâncias que estão sempre nos separando refazendo-as em novas escalas, nas maiores nas menores, e a resposta de meu amor é sempre: muito perto, me abraça para que meu corpo revise mais uma vez o teu e ele junto de meu coração estejam certos de que jamais te encontrarei nos outros homens.

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