17.6.08

UMA HISTÓRIA

Era uma vez — não, não; era mesmo, na realidade, toda vez. Nem comecei e já estou enfadado — quem lê vá desculpando. É que se mil e uma vezes eu tivesse que contar, mil e uma vezes ainda seria o mesmo — sem pontos a aumentar. Para Sherazade foi bem mais fácil, garanto!

Aliás, é melhor aqui não falar “contar”. — Quando as fragmentárias idéias do que está se resultando nisto começaram a se tornar uma ameaça, da qual eu não teria como escapar, fui procurar ajuda nos livros, verificar se havia gênero que suportasse uma narrativa de enredo quase nulo. O que tenho a registrar é tão pouco, é tão medíocre, que até tipologias que só abrigam o curto e o reduzido são demais.

Aprendi que Conto não dá pra ser, porque diálogo e conflito são elementos fundamentais para sua elaboração. E a pessoa sobre quem escreverei não fala nada significativo, nada que outros já não tenham dito e, sobretudo, não conversa consigo mesma porque não possui vida interior. Conflito? Somente algumas insatisfações tão clichês que qualquer destaque seria alarmismo.

Crônica também não será, pois nem me valendo de toda minha criatividade eu conseguiria, como fazia Sabino, coroar com êxito o pitoresco — se é que há — ou o irrisório da vida dela. Mas falando em Sabino, assim como ele, em sua Última Crônica, vejo que só estou adiando o momento de escrever, assustado com a perspectiva que, neste caso, não é nada boa.

Por que insisto? Rachel de Queiroz uma vez disse que não gostava de escrever, mas que escrevia para se livrar das idéias que lhe vinham. Pois bem, é exatamente para me livrar dessa personagem que me assombra que escrevo.

O nome dela é Anísia. (E que não se antecipem os que porventura acharem que usarei o presente intencionando conferir atualidade ao texto. O faço somente para evitar confusões com o tempo. Já disse: com ela é toda vez. Não vou desperdiçar trabalho distinguindo pretéritos sabendo que o agora e o depois vão confirmar a desimportância do esforço.) O nome dela é Anísia. Nome desprovido de qualquer graça e que por isso mesmo combina muito com a dona. Pois muito menos engraçada consegue ser. Naquela vez em que tentou contribuir com uma piada na roda de colegas que riam de trivialidades, caiu na besteira de repetir uma que há muito já contavam:

— Ouvi dizer que o governador proibiu as mulheres de Santa Maria de engravidarem, para diminuir a população de gente feia no estado.

Mas quando o sujo desdenha do mal lavado, ninguém ri. Ela se tocou. Desconheço outra vez que tenha se aventurado no humor. Até porque a expressão que sempre carrega na cara não contribui. Quando calada, os lábios ficam sempre emborcados e, como o mínimo de claridade parece lhe incomodar, franze os olhos, montando uma careta aborrecida.

E antes que eu me esqueça: não gosta de música. Nunca ninguém a viu cantarolando um lá-lá-lá, distraída. Dançar, muito menos. Seu corpo gordo, de bunda achatada, sustentado desarmonicamente por pernas finas, não possui leveza para isso. Mesmo em criança nenhuma coisa nem outra. De roda nunca brincou.

Mas foi já em princípios de sua adolescência que teve talvez a principal de suas raríssimas reflexões: deu-se conta de que não lhe faltavam apenas encanto e beleza. Ela, que como foi dito há pouco, não tem muito boas relações com a claridade, é também cria de uma família escura. E, como se não bastasse, pobre. Na medida em que crescia, Anísia, alienada que é, era forçada a perceber que o mundo, ajustado ao sabor dos brancos e endinheirados, só permite aos como ela, pequenos espaços, e, em geral, perto dos fundos. — Porém não se engane quem, apesar do que já foi posto, pode ainda cogitar que Anísia teve algum rompante sócio-político e engajou-se em favor dos seus iguais. Coisíssima nenhuma! Não titubeou em aceitar da tia que casou com um preto que vencera na vida, dono de farmácia grande, o convite de ir morar em sua casa para ajudar a cuidar do filho que o casal esperava.

Casa de grã-fino, assobradada, situada na praça onde fica a prefeitura e a igreja, com terraço gradeado, de onde se pode ficar tomando a fresca e ver o vai e vem das pessoas — cada uma com uma história, com motivos, com assunto, com vida. E desse camarote, aonde, desde que chegou, passou a se empoleirar como ave agourenta, sempre que há tempo entre uma ou outra obrigação, Anísia, ávida, se alimenta da vida alheia para nutrir as grandes extensões de corpo que lhe sobram.

O farmacêutico era bom negociante, tinha na clientela as figuras tidas como ilustres da cidade. Por muitas vezes indicava o remédio sem que fosse preciso o doente ir ao médico; com isso ganhou, na boca do povo da cidadezinha, título de doutor. Anísia, mais que ele e sua mulher, tinha grande orgulho do título, orgulho de morar em casa de parente doutor, imaginava que por isso em algum canto lhe sobrasse alguma importância também. Embora fosse de casa, nunca lhe dirigiu a palavra sem colocar o doutor antes do seu nome. Quando ele morreu, alguns anos depois do nascimento do filho, a tia ficou tomando conta da farmácia e, boa administradora, conseguiu manter o negócio sem grandes baixas, embora nunca tenha sido chamada de doutora.

À Anísia foi recomendado que redobrasse os cuidados com o único homem da casa. Mas nem teria sido preciso dizer: até nas amizades do menino ela metia o bedelho. Os colegas chegavam à porta: — Ô, Toninho, vamos brincar? E se Toninho não tivesse escutado, ela mentia, dizendo que ele não estava, ou que estava dormindo. Algumas vezes Toninho a flagrou fazendo isso com alguns dos amigos que mais estimava. Dava-lhe grandes broncas na frente deles. Ela nem se importava. Ao contrário, só achava ainda mais que estava certa, que aqueles meninos eram má influência, que os filhos do juiz eram os únicos dignos da companhia de Toninho. Nenhum dos amigos gostava dela. Logo virou alvo de chacota entre os meninos: “se alguém quer que uma história se espalhe, não precisa colocar na rádio ou no carro de som, conta pra Anísia!”, ou, “quem foi que disse? Anísia? Então é mentira!” Toninho não era muito de fazer coro com eles, é bem verdade, mas nunca a defendia. Tornou-se rapaz com baixa tolerância às maneiras dela. Não raro a humilhava, sentido até algum prazer nisso. Certa vez, encolerizado por razão de mais um de seus intrometimentos, atirou-lhe um pote de maionese que, se não tivesse pego na parede, teria lhe estragado ainda mais a cara. Ela, resignada, com secreto medo de ser vista como dispensável e ter que se ver obrigada a voltar pra casa da mãe pobre, não podendo mais desfrutar do camarote para o espetáculo da vida alheia e envergonhar-se por perder o padrão social que pensa ter, jamais chegou a verdadeiramente se ofender. E quando Toninho bebe e dá algum vexame na rua, ela se vale de todo o seu talento com a mentira para dissimular às colegas e ao povo da rua o acontecido.

Era pra eu ter dito que em festinhas de escolas e quermesses costumam convidar a tia de Anísia para sentar à mesa de autoridades ou de comissão julgadora, porque ela costuma dar uns trocados como patrocínio e também porque alguns acham que se trate mesmo autoridade, por ser viúva do “doutor”. A tia, enfadada, nunca comparece. Manda Anísia para representá-la. E Anísia vai satisfeitíssima. De cabelo alisado e com boca pintada de batom bem vermelho, senta e sustenta a pose quantas horas forem necessárias. Se tem que dar algum voto, em ocasiões como desfile infantil ou rainha do milho, observa primeiro qual menininha está sendo mais votada, para depois dar seu voto — não seria louca de desperdiçar seu voto com quem vai mesmo perder. (Sei que é totalmente irrelevante essa informação e eu poderia tê-la deixado omissa já que não a encaixei no outro parágrafo, mas estou tirando leite de pedra: se não é essa, é nenhuma. Não posso me dar ao luxo de um Brás Cubas que sugere ao leitor que não leia parte do que escreveu. Não posso desperdiçar nada ante minha pobreza de assunto.)

Já citei que ela tem colegas, sim? Pois bem, colegas e só. Ninguém a quem possa verdadeiramente chamar de amiga ou amigo. Em geral, esposas frágeis e indolentes de alguns clientes da farmácia. Algumas que ela conhece desde pequena. Nenhuma lhe faz efetivamente uma visita — encontram-lhe no terraço, sentada, a se deleitar com o movimento da rua, ouvem a mais recente fofoca, retribuem com algum comentário sobre alguma festa ou jantar e se despedem sem saudades.

Foi com elas que, fragmentariamente, Anísia aprendeu sobre a intimidade com um homem. É claro que nunca fora nenhuma inocente. Curiosa que é, sempre soube de algumas coisas. Mas se surpreendeu ao constatar a empolgação delas em comentar umas com as outras sobre como é bom. Às vezes falavam de beijo, comparando os beijos dos maridos com os de ex-namorados, também com muito prazer na fala e no rosto. Anísia, que já naquela época se manipulava algumas vezes em busca de algo, sem nada encontrar, ficou mesmo curiosa. Antes, achava que essa história de prazer e desejo em mulher era coisa de livro e novela. Mas se consigo mesmo não conseguira nada, como faria para saber? Já que nunca tivera ninguém. Já que nunca soubera como abraçar e beijar um homem. A curiosidade aumentava e a virgindade, orgulho e honra durante um bom tempo, agora ia se convertendo em maldição. Os apelos do corpo eram confundidos com angústia. — É que quando olhava para um rapaz bonito, empinando-se, mudando a fala, tentando parecer mais leve, maviosa, sorrindo seu sorriso mal feito, o rapaz ou a olhava com estranhamento ou saia de perto, segurando uma gargalhada.

Afinal, por caridade, quem iria querer Anísia? A resposta mais tarde iria ser dada exatamente pela pessoa que a levou pra cama: por caridade. Sempre há um chinelo velho para um pé cansado, não é o que dizem? Anísia, chinelo velho, tratou de cansar um pé. — Alberto era um desses rapazes que a eriçavam na juventude. Barbudo, de pernas e braços peludos, despertava dentro de Anísia miados de gata vira-latas no cio. Ímpetos que a levavam a repetir a procura solitária em si mesma, a buscar o que as amigas diziam sentir. Mas nem mesmo ela conseguia achar algum atrativo em si que a motivasse à persistência. Sua mão pesada parecia lhe machucar e ela acabava por sentir um misto de nojo e vergonha. Maldita natureza que não lhe esfriava! Um mero encontro ocasional com Alberto na rua lhe renovava os calores. Se fosse alguém que vivesse por dentro, talvez até tivesse caído em alguma espécie de tristeza romântica, algo parecido com dor de paixão não correspondida. Porém, o que ela queria era somente executar parte de sua função de fêmea. (Antecipo que ela não teve filhos e ouso garantir que jamais terá.) E como uma galinha, não se ofendia se o galo não a cobria naquele momento; sua hora haveria de chegar!

E chegou. Depois de longos anos, depois de outras rejeições, depois de Alberto ter ido morar em um estado distante, casar, ter um filho, se separar da mulher, sair do emprego e voltar para cidade já com seus cabelos e barba esbranquiçando. Anísia, que troca fofocas com a irmã que o hospedava, começou a lhe fazer visitas periódicas, levando-lhe doces ou sopa. Ele gostava dos agrados. E Anísia ficava sem caber em si de felicidade. Num fim de tarde, quando passou por lá levando uns sequilhos, Alberto, sabendo que estava só em casa, lhe segurou forte os braços e lhe deu um beijo. Ela se tremeu toda. Ficou tonta. De uma vez só sentiu medo, nervosismo, vergonha, alegria e desejo. Ouviu-o dizer que no fim de semana lhe levaria numa cidade próxima, onde havia um clube com um hotel bacana e saiu de lá sem nada dizer. Desde então ficou ansiosa e assim permaneceu durante os dias que antecederam o passeio. Não comentou nada com ninguém (não havia mesmo ninguém com quem partilhasse segredos, ou melhor, na verdade nunca fora alguém o bastante para ter segredos). Como é boa mesmo em mentiras, deu uma desculpa à tia e foi passar o fim de semana esperado.

Durante a viagem trocaram o mínimo de frases. Ela por estar nervosa e não saber mesmo o que dizer. Ele porque, de leve, já começava a sentir que iria se arrepender disso. Mas a música alta no som servia para justificar a mudez de ambos. Enfim chegaram. O clube, com muito verde, muitas flores e piscina grande, encantou Anísia que, secretamente, fingia estar em lua-de-mel. Ao entrarem no quarto, foi logo tomar banho. Não sabia o que deveria fazer senão o que viera fazer. Então se antecipou. Temia que Alberto desistisse. Ele estranhou a pressa ao vê-la sair do banho só de toalha, sorridente, macaqueando algo no jeito de se mover que talvez intencionasse ser charme. E a situação agora lhe inspirava mais tragédia que excitação, mas não recuou — quanto mais cedo começar, mais cedo termina.

E neste ponto pouco me importa a mingua de assunto, recuso-me a descrever tal cena! Basta dizer que para Anísia foi muito bom. Não exatamente a penetração, mas ter um homem pesando em cima de si, o roçar do corpo peludo no seu, a quentura do contato com o outro. Teve vergonha de gemer. Conteve-se. Porém, respirava sofregamente como um asmático. Alberto, viril que sempre se gabou ser, funcionou, mas não conseguia gozar, e, com medo de brochar, resolveu fazer uma coisa da qual, mesmo mantendo em absoluto segredo, se envergonha até hoje: como estava usando preservativo e ela certamente não iria perceber, fingiu com grunhidos um orgasmo, como se fosse uma mulher frígida, e se levantou rapidamente indo para o banheiro se lavar. Anísia suspirava na cama se sentindo mulher completa. Depois que Alberto voltou, quase uma hora depois, e já todo vestido, ela perguntou se podia fazer um lanche. Ele consentiu com a cabeça e ela pediu muita comida. Comeu sozinha. De estômago embrulhado ele não conseguiu. Evitava vê-la comer. Voltaram tão logo ela se satisfez. O som do carro mais alto ainda.

Duas semanas depois Alberto foi embora para a cidade onde trabalhava. Desde então não veio mais visitar a irmã. Embora não afirme que estejam namorando a distancia, Anísia não desdiz quem assim nomeie. Cheia de pudores, nunca detalha a viagem às colegas. Narra por alto, deixando margem para todas acharem que o que lhe aconteceu foi bem melhor do que o que lhes acontece com os maridos. Aliás, conta e reconta a quem estiver disposta a ouvir, iluminando este ou aquele trecho com maior ou menor intensidade, fazendo parecer, em cada vez, uma história diferente.

Talento que eu gostaria de ter para recomeçar isto aqui em algo que se pudesse chamar de história. Que ainda que não fosse atraente tivesse começo, meio e fim. Mas com Anísia tal feito me escapa a qualquer atributo que eu tenha para redação. Com ela é toda vez, mais uma vez repito. O leitor que porventura tenha conseguido chegar aqui que se arrisque: remonte e tente chegar a algum lugar que não seja este. Duvido que seja permitido à Anísia um happy end ou um final triste em dia chuvoso. Arrisco até a dizer que possivelmente ela jamais morra — a Morte só lembra de vir buscar aqueles cuja existência é embutida de vida. Ou talvez não. Talvez num dia dos mais bobos, ela morra. Morra no lugar de alguém que a Morte, enfadada de ter que ir buscar, a ponha como representante.

escrito em 8/05/2008

11 comentários:

amarelo disse...

Eu já disse esse conto poderia virar um livro neh? =)

Anônimo disse...

sou fã da sua escrita, até nos detalhes que insiste em colocar. precisamos nos comunicar, mas o tempo não me deixa.

domingo (22) vou apresentar uma canção folclórica japonesa em comemoração aos cem anos da imigração japonesa em frente ao príncipe do Japão e algumas autoridades de lá. me deseje sorte, estou em pânico.
estou lendo O Lobo da Estepe, devo-te uma conversa e fotos.

abraço, meu querido.

Unknown disse...

Continuo a sorrir da vida dessa miserável.

Meus parabéns por teu conto.

Unknown disse...

mosinho: Ñ kra vc consegue me surpreender sempre esse conto está d+, principalmente pelos detalhes q vc insiste em deixar estampado, simplesmente maravilhooooooooooso.
bjs

... disse...

estou muda.
que texto!

algum momento do ano passado...discutia com alguém sobre o insignificante social. algo que macabeá de Clarice...me fez pensar muito. ou sobre a barata de kafka. ou sobre as mortes de Caio.

enfim.
texto foda.

C. L. DeMedeiros disse...

tanta gente talentosa
no meu sertão que vai virar mar
mas o mar vai ter que se virar pra arranjar jangadas habitaveis pra todo mundo morar...

Não se perdera' nenhum talento
e pra se ter uma ideia de quantos são>
tente contar as gotas que todas juntas formam o mar>

e em cada um
um tanto assim
de genialidade incomparavel
por que em outra esquina
vc encontra outro menino
talvez não de materia organica como
pano
mas de vento ou de fogo
mas cada menino com fagula unica.

obrigado por se abrir pra mim.

Rodolfo Galvão disse...

tanta gente talentosa,que não se poderá perder nenhum talento...

NÃO SABIA QUE TINHA UM PROFESSOR TÃO TALENTOSO...PARABÊNS...

C. L. DeMedeiros disse...

quero
saber
qual
o
estado
das coisas...

se as coisas precisam
tomar medicaçoes
se elas ficam deprimidas

se a temperatura fria afeta como
nos afeta...

MENATWORK disse...

adorando seu blog !


beijos

olhares disse...

Meu Deus...que texto mesmo...
Amei,adorei.
Por aqui eu ficarei!

Anônimo disse...

UÓTIMO!