10.6.08

SOBRE QUANDO NÃO SE DÁ PARA TROCAR DE GELADEIRA

Esses dias encontrei uma amiga muito querida, dessas com quem se pode ter qualquer tipo de conversa, com quem não há receio de se desnudar em ser verdadeiro e até chorar sem esconder o rosto. E como o mesmo ela sente por mim, não fez rodeios em responder ao meu “como vai?” dizendo estar triste.

— O que aconteceu?

— Eu acho que descobri que não sei amar.

Impossível você não saber amar, pensei. Logo você que sempre me pareceu ser cheia de amor. Que já me falou coisas tão verdadeiras e bonitas sobre ele. Que já leu livros importantes em que o Amor é tão formidavelmente ilustrado. Você que sabe enfeitar-se para o amor, com sua boca charmosamente intumescida, pintada de vermelho, cabelos soltos, indomados, olhos sensuais, boneca adulta. Que é toda feminina e conhece intuitivamente os segredos românticos de antigas sacerdotisas ao perfumar-se, ao vestir-se, ao escolher as jóias, ao cozinhar, fazendo pratos úmidos, caudalosos, coloridos, quentes, aromatizados com temperos eriçantes. Você que sobretudo não facilita com a palavra Amor porque tem consciência do que ele realmente é. Impossível que você não saiba. Mesmo porque, antes de qualquer conhecimento sobre ele, você o sente e sabe que é correspondida. Mas ela continuou:

— Realmente não sei se sei. Às vezes sinto que estou repleta dele, não cabendo em mim e minha pele parece esticar. Como se um único ser não fosse capaz de recebê-lo e eu precisasse de vários amantes para me ajudarem a me livrar dele que só cresce, cresce e precisa de mais espaço. E agora fiquei sabendo de uma amiga que se separou porque se apaixonou por um amigo. Perguntei ao meu marido, a quem julgo ser o grande amor da minha vida, se haveria de ser sempre assim, se para um casal se separar era necessário acontecer uma outra paixão. Ele me falou sobre a teoria da geladeira nova e da velha: você tem uma geladeira velha e embora ela ainda funcione, às vezes parece se sentir cansado dela, do barulho de seu motor, insatisfeito com a temperatura em que ela tem se mantido. Mas permanece com ela por medo de ficar sem geladeira. Até o dia que encontra uma geladeira nova, que lhe agrada e por isso mesmo você perde todo o receio de se desfazer da velha. Fiquei um tanto assustada com aquilo. Somos ainda tão jovens, vamos todos os dias às ruas, entramos em contato com pessoas novas, estamos todos suscetíveis porque vivendo não dá pra ser de outro jeito. Pedi para ele prometer comigo que jamais viveríamos tal situação, que antes que virássemos geladeira velha um pro outro nos separaríamos...

— Bem, até alguns anos em casa, tínhamos uma geladeira que já estava aqui desde antes de eu nascer. Vez ou outra ouvia minha mãe dizer que precisávamos trocar, que o modelo era velho, consumia muita energia e que seu funcionamento já não era tão bom, que de uma hora pra outra poderíamos ficar sem. De fato uma vez ela até pareceu não mais prestar. E já tínhamos o dinheiro para uma nova. Mas preferimos insistir com ela mandando-lhe para o conserto. Porque uma nova, por mais formidável que fosse, não nos serviria. Aquela geladeira velha era preciosamente amarela, a cor de nossa cozinha na época. Para trocarmos teríamos que trocar também a cozinha, porque ninguém mais encontrava geladeira amarela; uma outra ficaria por demais destoante da cozinha e, consequentemente, de nós. Então fomos com ela até onde pudemos porque descobrimos que era só com ela que a harmonia de nossa casa ficaria perfeita. Até quando ela realmente morreu, sem mais chance de conserto. Então trocamos a geladeira, trocamos a cor da cozinha e também outras coisas mudaram em nossa casa e em nós.

Ela olhou fixamente para mim com um novo ar no rosto, alegre, e sorriu. E eu, rapidamente desfazendo uma expressão indagativa por aquele seu olhar, também sorri. — Só agora tinha realmente entendido o que, sem querer, disse.

escrito por volta de abril de 2007

3 comentários:

Cefas Carvalho disse...

Gostei do texto, Filipe! Parabens pelo blog.Vou pegar alguns para divulgar no "Texto da segunda" e aqui em Natal, ok? Um abraço!

amarelo disse...

Um dos teus textos que eu mais gosto...

l disse...

filipe,
agora, e só agora, passei e te li. E... sabe aquele nosso amor,nosso? ele não morreu não, verdade. Há tempos e tempos. E ... sabe?
fiquei emocionada de encontrar esse texto aqui.

Tanta coisa mudou. Fiquei sem geladeira, fiquei na geladeira, fui para o forno, agora parece que apareceu uma nova. Você é, e foi, Fundamental.

e

Obigada.

Te amo.

e vc sabe que eu não facilito com essa palavra.

Obrigada.

Luana