12.6.08

MEMÓRIA EMOTIVA

Quanto tempo dura uma emoção? Melhor: por quanto tempo a emoção de um momento pode ficar guardada dentro de nós? Será que durante toda a vida carregaremos os ecos de sensações que determinadas situações nos fizeram sentir? Se sim, seremos sempre passíveis de em certos instantes, sem muito aviso — às vezes apenas um gesto ou um cheiro —, sermos acometidos por elas novamente?

Mexendo na bagunça do meu quarto, eis que me recai nas mãos um livro que eu nem lembrava mais possuir. E junto com a lembrança da história que está contida nele ele me trouxe as recordações e emoções da situação em que o ganhei.

A letra meio trêmula com que a autora o ofereceu a mim num autógrafo se encarregou de evocar a data, registrada junto da assinatura: dez de junho de dois mil e cinco. Eu mal havia chegado à cidade, uma então grande amiga que já me aguardava, me ligou dizendo estar com as entradas para a exibição de Dançando no Escuro, que na época já não era mais lançamento, mas ainda não tínhamos visto e aquela amostragem era uma ótima oportunidade. Fomos eu, ela e seu então namorado. Ela se sentou entre nós dois e do meu lado direito a poltrona vizinha se manteve vazia, na seguinte, uma senhora a quem não prestei atenção.

Selma, a protagonista da história, sai da Tchecoslováquia para os EUA — país dos musicais que ela tanto amava assistir — para tentar conseguir fazer a cirurgia que impedirá seu filho de ficar cego devido a uma doença genética que já tirou dela quase toda a visão. Para isso ela trabalha exaustivamente, disfarçando para todos a sua quase total cegueira e seus objetivos. Disfarçando às vezes também para si mesmo seus próprios problemas, imaginando-se num grande musical, onde até mesmo os ruídos das máquinas em que trabalhava viravam música e todos dançavam. Economizava tudo o que pode para o tratamento. Seu vizinho, um policial que está devendo muito ao banco, desesperado e tendo conhecimento de sua deficiência, a rouba. Na tentativa de reaver o seu dinheiro, ela é forçada pelo próprio ladrão a matá-lo. Desacreditada e se privando de detalhar as circunstancias em que tudo aconteceu, acaba sendo condenada à forca. Enquanto espera a execução, até poderia ter recorrido e comutado sua pena, mas como para isso teria que usar o dinheiro que tinha juntado para a cirurgia do filho, prefere que ele se cure e veja os netos que um dia terá e aceita resignadamente a morte.

Mas quem já viu ao filme pode atestar: ele é muito mais do que isso. Só assistindo mesmo para sentir o peso do drama que massacra Selma. Eu chorei. Chorei muito. Não aquele choro de quando vemos um outro filme qualquer, cena de novela, ou mesmo notícias tristes no jornal. Foi um choro desenfreado, com soluços. Nunca passei e os céus me protejam de passar situação parecida. Mas ali era a realidade transfigurada em arte me fazendo provar da mesma agonia que ela sentia em ficar no silêncio. O desamparo com que ela seguia em sua luta. A dor de uma mãe disposta a dar sua vida pra iluminar os olhos do filho. — Maria crucificada em lugar de Jesus.

Fim de filme. As luzes do cinema se acenderam e eu ainda chorava. Minha então amiga e seu então namorado saíram na frente, percebendo que eu realmente precisava de mais um tempo ali sentado. Enxugava as lágrimas na blusa, fungando, procurando me recompor. Foi quando fui surpreendido pelo comentário feito em tom extremamente simpático pela senhora sentada na poltrona depois da vazia ao meu lado:

— Mas que rapaz sensível!

Olhei pra ela tímido, esboçando um sorriso e logo voltando a baixar o rosto.

— Nosso encontro aqui talvez não tenha sido por acaso. Acho muito bonito um jovem capaz de se emocionar assim. — Ela disse sorrindo. Continuou me olhando por uns segundos e mexendo em sua bolsa como quem procurava algo continuou. — Eu havia prometido dar isto a uma pessoa, mas acho que será bem melhor dar a você.

Era um livro. A Luz do Amor. Em outras circunstâncias eu teria pensado de imediato: que título cafona! Mas na hora, nada pensei. Apenas observei a capa e folheava suas páginas sem ler. Ela continuava me olhando com ar bondoso. E então me falou sobre o livro.

— Fui eu que escrevi esse livro. Ele conta a minha história e a história do meu filho. Quando engravidei dele tive uma espécie rara de rubéola que não foi identificada pelos exames médicos. Por conta dela meu filho nasceu prematuro e com múltiplas deficiências, inclusive cegueira. Os médicos lhe deram apenas dez anos de vida. Sofri muito. Sobretudo por conta do preconceito das pessoas. Mas hoje ele já tem catorze anos e todo o amor que eu e minha família damos a ele o faz se adaptar cada vez melhor ao mundo.

Eu fiquei bobo! Ela tomou o livro de minhas mãos, escreveu uma dedicatória e pôs seu autógrafo. Agora era eu que olhava para ela que não parecia ter chorado nenhuma vez ao ver o filme. Naquele mesmo espaço de tempo eu tinha me aproximado de duas histórias diferentes, mas, de certo, com muitas dores parecidas. Uma da ficção e outra real. Duas mulheres que pagavam um preço alto demais porque, como diz Selma no filme, desejavam ter o prazer de segurar um filho nos braços. O que se seguiu eu não sei explicar de quem foi a iniciativa: nos abraçamos. Acho que era apenas isto: nós dois queríamos nos abraçar.

Li o livro de uma vez só na semana seguinte. Leitura fácil, sem se preocupar em fazer Literatura. É apenas o relato de alguém que realmente precisava dividir suas angústias, reflexões e as alegrias que ia conquistando com os progressos do filho. O compartilhar de uma história repleta de emoções que ela, forte que seja, não pode guardar sozinha. É preciso dividi-la com os que ela ama e os desconhecidos. Preferencialmente desconhecidos com a capacidade de se comover, como um rapaz que chora feito criança ao ver um filme.

Pessoas como eu! E não me elejo assim com intenção de me gabar. — Nesta vida o que não falta é motivos para nos comovermos. Seja por conta de tristezas ou de fragmentárias alegrias. Quem sente sabe: a alma às vezes cansa e não há tempo para se refazer. A vida é agora, agora e agora e agora... E amanhã, por mais filho de hoje que seja, pode não guardar nem um laço de parentesco. Duas semanas depois daquele encontro minha vida mudou completamente e um dia talvez eu também escreva um livro contando o que aconteceu. E foi mudando, mudando e só vagas semelhanças e momentos como o de agora em que seguro este livro atestam que o eu daquele dia é o mesmo de hoje. A então amiga já não tem mais seu namorado. Mesmo nós que nos gostávamos tanto nem somos mais amigos. Por onde anda a senhora e seu filho? Continuam bem?

E tudo vai passando. Só nos resta sentir muito. Sentir bem. Porque ao que parece, é só o que fica. E num certo dia, desavisadamente, um livro, ou um filme, ou uma foto, ou um gesto, ou um cheiro vai nos fazer lembrar.

escrito em 22 de janeiro de 2008


5 comentários:

... disse...

eu estou boquiaberta com todo esse relato. E um pouco apaixonada com as sensações...

as únicas vezes que chorei por um filme...foi "a espera de um milagre"... não sei... eu me sinto pequena existecialmente falando... uma macabea da vida. sabe? às vezes sem me dar conta da verdadeira existência.

adorei o seu lugar.

Gustavo disse...

eu chorei com o teu texto. claro, não um choro grande e tudo mais, só uma lágrima mesmo, que escorreu discreta.
mas é incrível, porque eu não chorei com dançando no escuro, embora, óbvio, tenha achado o filme lindo.
e é o preferido da minha namorada, ela chora sempre que vê.

na verdade, o único filme que chorei até hoje, bastante, foi o documentário do cartola. na cena do enterro.
eu nem teria porque falar isso, mas é que pra ti faz sentido.




tá, e aí, agora seremos amiguinhos de blog, é? já foi de comunidade, msn, outra comunidade, agora blog. queria ter mais tempo pra conversar contigo.
:*

Anônimo disse...

Sua história é muito linda! e contada por você então, nossa! até viagei no mundo da imaginação como se estivese no cinema naquela poltrona vazia entre você e a senhora...

Anônimo disse...

Sua história é muito linda! e contada por você então, nossa! até viagei no mundo da imaginação como se estivese no cinema naquela poltrona vazia entre você e a senhora...

Edonis Joseildo disse...

Lindo moço. Emocionei-me com sua história. E invejei-lhe pelo choro. Como ela, acho lindo quem é capaz de chorar. Eu não sou, não dessa forma, e gostaria de ser. Ensaio o choro, mas não cai a lágrima, emociono-me, mas não denuncio. Quem chora é verdadeiro, é real. Quem não chora se esconde, finge. A dor do fingir é pior que a dor do se expor. Chorar pra dentro sequela mais que lacrimar, a dor se torna solitária, individual, egoísta. Destrói o interno e mantém o externo, belo. E pra esses inglórios do choro não se chegam senhoras, nem livros, nem abraços, pelo menos um "tudo bem?". Não há situações como essa, que nos convidam, por ínfimo que seja o momento, a nos desligarmos daquilo que nos faz sofrer. "Só nos resta sentir muito. Sentir bem." Porque a lágrima até pode não ser comum a todos, mas o sentimento é, e claro, a dor também, e só nos dói aquilo que é ou já nos foi bom. E por fim ficam lembranças, e com elas os sorrisos e choros, que o tempo e o acaso brincam de leva e trás.