14.6.08

CONTRIBUIÇÃO TARDIA AO MONTEIRO LOBATO

Se eu acredito em Mula-sem-Cabeça, Lobisomem, Negro D’água ou qualquer outra figura dessas? Quando me perguntam, é claro que eu nego. Sou grande e não posso pôr em risco minha reputação de pessoa estudada e científica. Muito embora até hoje, se vou numa fazenda ou qualquer lugar com mais árvores que concreto, não permito que ninguém mencione o nome da Comadre Florzinha — que desde criança aprendi a temer por conta de suas chicotadas invisíveis e do seu poder de fazer a gente se perder no mato. Mas já que o respeitado escritor Monteiro Lobato, lá pelos anos de 1917, sem vergonha alguma propôs n’O Estado de São Paulo a abertura de um inquérito para provar a existência do Saci, pedindo aos leitores que enviassem relatos ou informações sobre o negrinho de uma perna só, eu agora me dispo de qualquer pudor adulto para contar o que me aconteceu.

Por conta de uma reforma que está sendo feita em minha casa, eu e minha família fomos obrigados a nos mudar temporariamente. Aguardamos o término da obra na casa de uma tia que mora em outro estado, mas tem uma casa aqui toda mobiliada. Então guardamos nossos móveis na garagem e em dois quartos vagos na casa de um primo e fomos pra casa da tia só com roupas e objetos pessoais. No meu caso, entre os objetos pessoais, estão inclusos os meus livros. Lógico! Jamais que eu os deixaria, ainda que bem encaixotados, solitários numa garagem ou num quarto que, vai saber, pode ter uma goteira, uma infiltração, traças, incêndio, alienígenas ou qualquer outra coisa que os estraguem.

Já devidamente instalados na nossa morada temporária, me lembrei de um livro que não é meu, mas que estava comigo para ser xerocado. Dentro das caixas dos livros que eu trouxe, tinha convicção de que ele não estava. Infelizmente, a última recordação que minha mente guardou dele era a de que eu o tinha deixado em cima da mesa na sala na noite anterior. Mas na confusão da mudança onde ele havia ido parar? No outro dia, logo cedo, fui à casa do meu primo fazer uma busca. Abri todas as caixas em que era possível ele estar — ou seja, só não abri as que têm escrito “panelas”. Procurei dentro dos móveis. Nada. Voltei para casa muito chateado e preocupado. Outras pessoas estavam esperando o livro para xerocarem também. E, como se não bastasse, o dito cujo é consideravelmente caro, se eu não achasse, teria que pagar por ele. Como minha mãe ralhou comigo, dizendo que não sei procurar nada, intimei-a a ir me ajudar a procurar mais uma vez na manhã seguinte. Fomos. Mais uma vez, nada. Minhas esperanças foram embora. Liguei pra dona do livro comunicando o acontecido e me prontificando a pagar-lhe outro. Minha mãe ainda me recomendou procurar nas caixas com os meus livros. Até o fiz, mas com muito pouca vontade, pois estava certo de que não tinha pegado mais nele depois que o deixei em cima da mesa. Outra vez, nada. Sem realmente entender como um livro podia sumir assim, cheguei até a fazer piada: tá encantado, foi coisa do Saci.

Sabendo do acontecido, Ní, a auxiliar administrativo do trabalho da minha mãe, que, muito prestativa, nos ajudou no dia da mudança, disse que iria fazer uma simpatia para obrigar o Saci devolver o livro. Ri da coincidência de termos atribuído a responsabilidade do sumiço ao mesmo salafrário. Gente boníssima essa Ní, que está na maioria das vezes rindo, não passa um dia sequer sem comer feijão, adora galeto — que ela chama “galeti” — e que quando está se sentindo muito bem instalada num lugar bacana diz: tô me sentindo em Nóvi Órqui. Pois essa boa Ní fez a simpatia e mandou me dizer que eu não parasse com a busca, porque a coisa é infalível. Mas eu, adulto costumeiramente incrédulo que sou, apesar de ter achado muito bonito o gesto da Ní, continuei a teimar na falta de esperança...

Pois dias depois, mais precisamente na noite em que se completou uma semana que a simpatia foi feita, mexendo nas caixas dos meus livros, procurando umas folhas para imprimir um documento, me deparo espantado com o livro. Ele estava ali, por onde eu já tinha passado a vista, por onde eu já havia fuçado e não tinha encontrado. Como isso se explica? O Saci que o encantou, ora, está mais do que evidente! Feliz da vida, contei logo pra minha mãe que, por sua vez, ligou pra Ní para agradecer a ajuda.

No outro dia Ní contou que passou o maior sufoco ainda na mesma noite pra desfazer a simpatia e deixar o Saci em paz. Pois a coisa consiste no seguinte: pega-se um pau e o enterra na areia dizendo: “Saci, estou enfiando este pau no seu cu e só tiro quando você devolver tal coisa.” — Desculpem não ter substituído o termo, mas acho que cu, Saci só entende por cu mesmo e minha intenção aqui é também ensinar a quem me lê a dar uma lição nesse safado. Mas é muito importante mesmo que conseguindo achar o perdido, que se desenterre o pau, porque do contrário, as dores dele enfiado ali passam para quem fez o trabalho.

Mais uma vez, obrigado, Ní. Agora que aprendi a receita desse quebra-encanto não perco mais nada. Quem tem cu tem medo. Até o Saci.
escrito em 26/09/2007

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