8.6.08

MAURA

— Vocês têm um real para inteirar minha passagem? — ela perguntou com cara e tom extremamente simpáticos, tirando a mim e minha amiga de nossa despretensiosa conversa de mesa de bar.

Era uma dessas doidas que comumente encontramos por qualquer rua. Mas naquela rua do Recife em especial, que se chama Rua do Hospício, eu pensei que tínhamos uma quase obrigação de tratá-la bem. — Nós, tidos sãos, éramos clandestinos ali? Convidei-a para sentar-se conosco tendo a aprovação do olhar da minha amiga, ainda que não soubéssemos exatamente o que conversar com ela. Como a cédula de um real que logo lhe entreguei, sentar-se e ter um pouco de atenção era outra coisa que parecia desejar.

— Meu nome é Maura, como é o de vocês?

Respondemos sem saber ao certo se fomos entendidos. Mas sabendo que para ela isso pouco importava. Sentou sem fazer cerimônia e desandou a falar. Era uma doida mansa e feliz, eu posso garantir — dava para constatar nos sorrisos constantes de boca e olhos pisca-pisca que enfeitavam seu rosto arredondado e bochechudo, acima de um estreito pescoço que unia a cabeça ao corpo gorducho de matrona.

— Pois vocês fiquem sabendo que eu andei muito hoje, resolvendo minhas coisas e esse sapato aqui que estou usando me aperta os pés.

Era um par de sapatos preto, baixo, gasto, sujo de pó — não sei se dessas andanças de hoje, mas que pareciam realmente tê-la acompanhado por outras tantas. Combinavam com o restante de seu visual, montado por um vestido estampadinho, com aspecto envelhecido; coque que deixava alguns fios de cabelo soltos e desgrenhados e uns óculos de lentes e armação grossas. Carregava duas sacolas cheias de não sei o que, mas que deviam ser o suficiente para sua vida feliz e despreocupada de doida — eu que uma vez já quis entregar-me inteiramente à felicidade sei que basta carregar bem pouco. Porque naqueles dias em que estive disposto a largar todas as coisas que me sustentam e me equilibram na vida burguesa que tenho para viver doidamente o que meu coração pedia, eu ia precisar de menos do que ela carregava. Entretanto, a razão dessa felicidade não me queria como eu a queria. E hoje acumulo coisas que nem em sacolas cabem. Mas toda minha felicidade embalada apenas num saquinho de pipoca.

Ela ia nos contando vários fragmentos avulsos do seu dia e de sua vida, pulando de um para outro sem preocupar-se com qualquer coesão que os pudesse correlacioná-los. (Mas o que estou dizendo? Se ela se preocupasse com coisas do tipo eu teria o direito de chamá-la de doida? Isso se tivermos nós realmente esse direito de classificarmos o que é ou não loucura...). Maura me constrangia com sua total de liberdade de ser. Ela simplesmente não se preocupava. Enquanto nós — nós desperdiçamos muito do nosso tempo alimentando sonhos e desejos que talvez nunca sejam realizados porque já formulamos antes leis e convenções que nos reprimem. Maura poderia dançar nua naquela rua tão movimentada, rindo gostoso ao som de sua encantadora música imaginária até que alguém repletamente envergonhado — sobretudo porque não teria tal coragem — a faria parar. São Paulo já havia dito há muito tempo em uma de suas cartas aos Coríntios que Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios.

— Eu gosto muito de cerveja. Lá na minha casa tem um freezer cheio!

Desculpe-me, Maura, por não ter pedido um copo para você beber conosco. Até cogitei fazê-lo, mas achei melhor não. Mesmo porque você não precisa. Nós que nos dizemos normais é que precisamos da cerveja e de outras tantas substâncias para podermos entrar de quando em vez nesse mundo que você vive. Todos nós de uma maneira ou de outra lhe invejamos.

Ela nos contou que sua mãe a odiava e queria lhe fazer o mal:

— Se um dia vocês virem na capa do jornal: “Maura morreu”, podem saber que foi ela quem me matou.

Impossível que sua mãe, sendo viva, a odeie. Difícil crer como alguém não possa gostar de um ser como a Maura, tão agradável e alegre. E eu poderia ter ficado o resto do dia ali ouvindo-a falar, vendo-a rir. Mas o relógio, invenção dessas das mais doidas de gente séria que quer pôr rédeas no tempo, me avisou que já era hora de ir. Chamei minha amiga, que estava igualmente encantada com nossa companhia, pagamos a conta e nos despedimos de Maura, que só pareceu entender que já nos íamos quando nos viu levantar das cadeiras. Então também levantou, agradeceu, se despediu dando tchauzinho com a mão e saiu andando em direção oposta a que seguimos.

Eu e minha amiga nunca a esquecemos e vez ou outra quando estamos juntos comentamos: “lembra daquela tarde da Maura?”. Claro que sim! Maura nossa amiga doida predileta.

E se alguém que me lê agora vir um dia por aí em algum jornal a notícia de que Maura morreu, por favor, me avisa para que eu possa chorar por mim.

escrito em 24/08/2006

4 comentários:

pat camargo disse...

Que delicia de texto . Bjs
Pat Camargo

Anônimo disse...

você sentiu minha reação ao ler este texto pela primeira vez, não vou fazer um bis aqui.
ressalto: maura também sente saudade, acredito.

aquático disse...

(resposta ao teu comentário no post sobre compreender/gostar)

com isso, filipe, você só me trouxe mais dúvida! é que eu vejo alguma diferença um pouco subjetiva entre apreender e compreender; e acho que pra gostar é preciso no mínimo uma das 2 coisas, sim. mas continuo desconfiando de que, a partir de um certo nível da compreensão, seja impossível não gostar. apreende? digo, compreende?

e agora, josé?

Clari... disse...

adorei!
escreva mais, filipe!